Resolvi limpar um armário antigo que uso para guardar tranqueiras. Em meio àquela bagunça, encontro minha velha máquina de escrever debaixo de uma pilha de papéis envelhecidos. Puxo pela alça e seu peso afunda no ar. Suas engrenagens rangem, atrofiadas pelo confinamento.
Testo o teclado. Ainda há um resquício de tinta. Coloco papel no rolo. A página em branco espera para ser violada. Arrisco um texto.
TEC. O som da criação literária não é orgânico e melífluo, mas uma sucessão tartamuda e mecânica de TEC-TE-TEC-TEC-TE-TECs.
Pele e cobre trocam estímulos. Os tipos emperram. Se exigir demais deles, encavalam. Resistem. Se recusam a acompanhar a velocidade do pensamento. Até que cedem. Os dedos afundam vários centímetros, dissipam a névoa da criatividade. As letras grudam no papel. Que diferença para um teclado de computador, que faz “POC”, e não “TEC”.
É preciso domar a máquina, fazê-la me obedecer. Ela esconde segredos. Procuro o “caps lock” para acionar caixa alta. Não é tão simples, descubro. É preciso conhecer uma coreografia de dedos para se escrever com letra maiúscula.
Assim os monges datiloscopistas faziam: falange do indicador sobre o carpo do anelar com a mão esquerda na terceira casa da quarta fileira de trás pra frente em dó bemol menor a sete graus noroeste às 13h do solstício de inverno. Ou isso, ou pode-se acionar a alavanca de maiúsculas e o fixador – mas, aí, qual a graça? Os dedos doem a cada investida contra o teclado, os músculos da mão começam a enrijecer, mas continuo. Escrever é penoso.
Penso que seria mais fácil bater nas teclas utilizando martelo e cinzel, mas não acho a caixa de ferramentas. Tem que ser no braço mesmo.
(Aí está a máquina que uso para escrever este blog. Crédito da foto: Louis Daguerre)
A luta é injusta. Máquina contra o escritor, munido apenas do material frágil das ideias. É aço contra éter.
Os arames da linguagem se retorcem. A imaginação emana do ferro, emergindo na alva superfície do papel, que será cuspido para fora das vísceras metálicas tão logo termine de ser contaminado pelas palavras.
As letras começam a secar. A tinta da máquina vai chegando ao fim. A linguagem murcha. A imaginação estanca. Retiro o papel do rolo e leio o que criei até então. A história conta de um rei cujos filhos foram mortos em batalha e que agora vê seu reino, sem sucessores, próximo à extinção.
Mas onde está o desfecho? Como termina o conto? Será que o sobrinho-neto-meio-irmão do tio-avô do rei que regressou depois de dado por morto assumiria o trono? Ou o vizinho-primo-enteado do amigo de infância do grão-vizir daria o golpe de Estado? Quem contará o final da história ao autor?
O fio de Ariadne se rompe, e o escritor se vê sozinho com sua pena, perdido em meio ao labirinto. E eis que... MALDIÇÃO!!! ACABOU A ENERGIA ELÉTRIC....................................
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Braddock Rises
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7 comentários:
Fiquei comovido ao ler o seu texto. Nutro o mesmo tipo de sentimento por um pabibaquígrafo, mas ninguém parece compreender e eu também nunca soube me expressar. Meus sinceros parabéns!
Eu não sei escrever
Eu não sei ler
Eu não sei somar
É a parte que te cabe nesse latifúndio.
Caro Braddock Lewis, inspirados por seu belíssimo texto, temos o prazer de anunciar o futuro lançamento de nossa marca: o iMáquinadeescrever.
Consiste basicamente numa máquina de escrever comum, mas virá com o logotipo de nossa empresa, que faz toda a diferença.
Em breve, nas melhores lojas de penhores do Bom Retiro.
Pois nós lançaremos o Galaxy Papibaquígrafo S-VIII, e garantimos que nosso sistema operacional será muito mais ágil!
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