terça-feira, 9 de abril de 2013

A máquina de escrever

Resolvi limpar um armário antigo que uso para guardar tranqueiras. Em meio àquela bagunça, encontro minha velha máquina de escrever debaixo de uma pilha de papéis envelhecidos. Puxo pela alça e seu peso afunda no ar. Suas engrenagens rangem, atrofiadas pelo confinamento.

Testo o teclado. Ainda há um resquício de tinta. Coloco papel no rolo. A página em branco espera para ser violada. Arrisco um texto.

TEC. O som da criação literária não é orgânico e melífluo, mas uma sucessão tartamuda e mecânica de TEC-TE-TEC-TEC-TE-TECs.

Pele e cobre trocam estímulos. Os tipos emperram. Se exigir demais deles, encavalam. Resistem. Se recusam a acompanhar a velocidade do pensamento. Até que cedem. Os dedos afundam vários centímetros, dissipam a névoa da criatividade. As letras grudam no papel. Que diferença para um teclado de computador, que faz “POC”, e não “TEC”.

É preciso domar a máquina, fazê-la me obedecer. Ela esconde segredos. Procuro o “caps lock” para acionar caixa alta. Não é tão simples, descubro. É preciso conhecer uma coreografia de dedos para se escrever com letra maiúscula.

Assim os monges datiloscopistas faziam: falange do indicador sobre o carpo do anelar com a mão esquerda na terceira casa da quarta fileira de trás pra frente em dó bemol menor a sete graus noroeste às 13h do solstício de inverno. Ou isso, ou pode-se acionar a alavanca de maiúsculas e o fixador – mas, aí, qual a graça? Os dedos doem a cada investida contra o teclado, os músculos da mão começam a enrijecer, mas continuo. Escrever é penoso.

Penso que seria mais fácil bater nas teclas utilizando martelo e cinzel, mas não acho a caixa de ferramentas. Tem que ser no braço mesmo.





(Aí está a máquina que uso para escrever este blog. Crédito da foto: Louis Daguerre)



A luta é injusta. Máquina contra o escritor, munido apenas do material frágil das ideias. É aço contra éter.

Os arames da linguagem se retorcem. A imaginação emana do ferro, emergindo na alva superfície do papel, que será cuspido para fora das vísceras metálicas tão logo termine de ser contaminado pelas palavras.

As letras começam a secar. A tinta da máquina vai chegando ao fim. A linguagem murcha. A imaginação estanca. Retiro o papel do rolo e leio o que criei até então. A história conta de um rei cujos filhos foram mortos em batalha e que agora vê seu reino, sem sucessores, próximo à extinção.

Mas onde está o desfecho? Como termina o conto? Será que o sobrinho-neto-meio-irmão do tio-avô do rei que regressou depois de dado por morto assumiria o trono? Ou o vizinho-primo-enteado do amigo de infância do grão-vizir daria o golpe de Estado? Quem contará o final da história ao autor?

O fio de Ariadne se rompe, e o escritor se vê sozinho com sua pena, perdido em meio ao labirinto. E eis que... MALDIÇÃO!!! ACABOU A ENERGIA ELÉTRIC....................................

Leia mais:
Braddock Rises
Relatos do passado

7 comentários:

Amânsio disse...

Fiquei comovido ao ler o seu texto. Nutro o mesmo tipo de sentimento por um pabibaquígrafo, mas ninguém parece compreender e eu também nunca soube me expressar. Meus sinceros parabéns!

Firmino disse...

Eu não sei escrever

Emílio disse...

Eu não sei ler

Jeremias disse...

Eu não sei somar

João Cabral de Melo Neto disse...

É a parte que te cabe nesse latifúndio.

Apple disse...

Caro Braddock Lewis, inspirados por seu belíssimo texto, temos o prazer de anunciar o futuro lançamento de nossa marca: o iMáquinadeescrever.

Consiste basicamente numa máquina de escrever comum, mas virá com o logotipo de nossa empresa, que faz toda a diferença.

Em breve, nas melhores lojas de penhores do Bom Retiro.

Samsung disse...

Pois nós lançaremos o Galaxy Papibaquígrafo S-VIII, e garantimos que nosso sistema operacional será muito mais ágil!