quarta-feira, 3 de abril de 2013

Memórias de um tempo que não vivi


Já perdi as contas de quanto tempo estou nesse ramo. Não que vá fazer diferença, não estou contando os dias para a aposentadoria. Mas às vezes, em momentos de nostalgia, me pego refletindo sobre tudo o que passei até aqui. Quando começo a ficar melancólico, geralmente descarrego minha M1911A1 em um travesseiro e me sinto melhor.

Busco paisagens longínquas na memória, mas muitas lembranças permanecem soterradas sob as cenas de desespero e destruição que já presenciei; sons, abafados por gritos de terror; sensações, anestesiadas pelos ecos da dor.

Meus pais não queriam isso para mim, posso garantir. Meu pai era detector de minas terrestres, se orgulhava do que fazia, e, como qualquer pai dedicado, desejava ver o filho trilhar o mesmo caminho. Ele me treinava para que eu pudesse assumir o lugar dele e ele se aposentasse aos 28 anos.

Meu pai sempre se mostrou preocupado com minha formação. Tive uma educação dura, mas hoje sei que estava apenas querendo me preparar para enfrentar o mundo. "Fortaleça o espírito, e fortalecerá o corpo", dizia meu velho, bebericando um chocolate quente da varanda de nossa casa enquanto eu prendia os pneus do carro com correntes em meio à nevasca.

De vez em quando, em meio às águas turvas da memória, emergem imagens de típicos momentos pai e filho, como quando ele me mandava retirar os vespeiros no telhado da casa com uma pinça de churrasco enquanto ele mordiscava petiscos à beira da piscina; ou quando ele me mandava expulsar os ursos pardos do nosso quintal enquanto ele assistia ao último capítulo de sua série favorita.

Ele estava preocupado em me treinar a viver. Com meu pai, aprendi a arte da negociação, a nunca desviar o olhar de uma encarada, a xingar no trânsito e a hora certa de entrar em uma briga de rua. Às vezes ele até mesmo pagava algumas gangues para me atacar, tudo parte da educação que ele queria me prover.

Certo dia, meu pai não voltou para casa. Havia pisado em uma mina terrestre. Talvez essa tenha sido a principal lição que tenha me deixado: a vida é imprevisível como... como... bem, nesse caso como andar em um campo minado de bermuda e chinelo.

Após a morte de meu pai, fui tomado de um ímpeto aventureiro. Queria explorar, viajar, descobrir novos lugares, povos e culturas. Li um anúncio no jornal sobre um grupo de exploradores que daria a volta ao mundo em uma jangada  e estava recrutando um especialista em reparo de motores. Eu sabia que minha mãe, ainda abalada pela perda do marido, jamais me deixaria ir. Determinado que estava a seguir meu sonho, decidi fugir de casa. Então, para poupar minha mãe da angústia de ter um filho desaparecido, fiz o que qualquer filho com um pingo de consideração faria: forjei minha morte em um acidente horrível e grotesco de trator.

Logo, vi-me sulcando o dorso do grande oceano a bordo da pequena embarcação. Nessa viagem, padeci todo tipo de sofrimento que geralmente acometem aqueles que se lançam ao mar: escorbuto, febre tifoide, micose e, o pior dos males, o terrível enjoo marítimo. Ainda tivemos de enfrentar lulas gigantes, tubarões alados, uma horda de escorpiões marinhos, pelicanos venenosos e até mesmo piratas somalis.

Após rebatermos todos esses infortúnios, uma tempestade se fechou sobre nós e sorveu nossa embarcação, sepultando a carcaça de madeira nas profundezas das águas. Escapei no único bote salva-vidas, sob protestos e maldições que meus companheiros atiravam sobre mim antes de irem ter com Netuno. Após muito tempo à deriva, cheguei a uma ilha onde reaprendi a viver.

Pelo suor de minha tanga, consegui domar as forças brutas da natureza. Precisei descobrir como criar as formas mais rudimentares de civilização a partir do nada. Contemplei o fruto de meu trabalho em cada laço de cipó, cada galho cortado, cada pedra amolada, cada rede trançada, cada lança afiada, cada peixe eviscerado, cada instalação elétrica armada.

Também corri muitos perigos. Após ser atacado por lobos selvagens, construí um refúgio sobre as árvores, só para ver minha carteira ser roubada por uma gangue de babuínos. Ainda precisei lidar com tribos antropófagas, uma erupção vulcânica, uma chuva de meteoros, agentes da receita federal me acusando de aumento ilícito de patrimônio, ordens de reintegração de posse, bombeiros querendo interditar minha cabana por falta de alvará, além de testemunhas de Jeová. Sim, foram as três horas mais difíceis da minha vida, ao menos naquela semana, até que fui finalmente resgatado por um zepelim.

Bem, chega de reminiscências por enquanto.

Vou até ali descarregar meu revólver em um travesseiro e já volto.

Leia mais:
Batismo de fogo
Minha autobiografia

7 comentários:

Líder da tribo antropófaga disse...

Braddock Lewis, então você conseguiu escapar com vida da ilha? Quero dizer que hoje em dia nossa tribo está bem mais moderna, graças à ação de uma ONG que veio até aqui e nos introduziu a aspectos básicos da civilização. Bem, ao menos graças ao último representante deles que sobrou. No começo foi difícil lutar contra os velhos hábitos. Agora plantamos nosso próprio alimento. Já temos uma pela plantação de pés humanos que deve vingar a qualquer momento na primavera. Venha nos visitar quando der.

Zé Lobo disse...

sbiçaaçuibcaasnilçdclmadcçasdc ç acscajks .asdçn a çcd çasj. Que saco, como é difícil digitar com patas.

Corpo de Bombeiros disse...

Alto lá. Esse blog será interditado por não possuir uma rota de fuga de incêndio adequada. Além disso, todos os extintores estão vencidos e as portas antifogo são de material inapropriado.

Vocês têm 25 anos, contando a partir do ano que vem, para se adequarem aos padrões de segurança ou lacraremos esse lugar. Bem, na verdade depois desse tempo vocês poderão prorrogar por mais 50 anos, e depois ainda entrar com um recurso para extender o prazo por mais dez anos. Mas depois disso, não daremos mais nem um dia de lambuja!

Segurança é coisa séria! Então agilizem logo esse alvará.

Ps: aceitamos também como alvará duas pilhas palito ou uma foto do John Travolta vestido de bombeiro.

Agentes da Receita Federal disse...

Não pense que escapou de nós, Lewis. O senhor pode provar de onde veio a renda usada para criar este blog? É bom começar a se explicar.

Netuno disse...

Olá, Braddock. Seus amigos mandaram lembranças. Eles disseram "queime no inferno verme traidor". Não entendo bem essas expressões do povo da superfície, mas soa um cumprimento bem cordial.

John Travolta disse...

Me deixem em paz!

Travesseiro disse...

Não, não, não, de novo nãããão!