sexta-feira, 5 de abril de 2013

Batismo de fogo

Tenho um nome a honrar e uma reputação a zelar, mesmo que para isso eu precise lançar mão de medidas pouco louváveis (do ponto de vista de um escoteiro-mirim-cristão-defensor-dos-direitos-humanos-vegano-virgem). Você sabe, se deixar que manchem seu nome uma vez, precisará mais do que uma boa esfregada para limpá-lo. E Braddock Lewis não é um nome que possa ser desrespeitado sem despertar vingança sanguinolenta.

Não nasci Braddock Lewis. Tornei-me Braddock Lewis. Meu verdadeiro nome perdi há muito tempo, durante uma expedição ao sul da Patagônia. Vaguei por muitos anos sem uma identidade, um homem invisível, sem jamais poder fazer um cadastro em uma pizzaria, sem poder assinar um cheque sem fundo. Passei anos tentando me reencontrar, redescobrir quem eu era. Recorri a filósofos existencialistas: Kierkegaard, Heidegger, Sartre, Nietzsche, Pedro Bial... sem obter respostas. Empreendi viagens ao coração de cavernas, ao topo de montanhas e ao fundo de rios para consultar gurus, monges, oráculos e peixes-sábios em busca de autodefinição e sentido pessoal. Tudo em vão. Nessas andanças, acabei me instalando em uma clareira nas florestas da Euroáfrica Periodontal. E lá eu renasci.

Foi numa tarde de tempestade. Ainda lembro como se eu mesmo tivesse estado lá. O dia foi encoberto por uma súbita cortina de trevas, nuvens negras de aparência sobrenatural. O vento rugia furiosamente anunciando a iminente carga d'água que desabaria dos céus. Desci correndo as escadas a fim de recolher as roupas do varal. Nesse momento, um corisco rasgou a escuridão e tingiu a noite vespertina com um clarão azul-elétrico. E então o firmamento regurgitou um poderoso trovão que ressoou em cada fibra de meu corpo.

bababraddockdalgharaghtakamminaronnbronntornnerrontuonnthunntrovahhhounawnskawntoohoohoordenenthurnuk!

Quando a escuridão tornou a me engolfar, senti-me estranhamente vazio. A chuva ganhou força. Das entranhas da floresta, o uivo dos ventos roçando as árvores teceu no ar uma lúgubre melodia.

lluuuuuwwwwiiiiiiiiwwwllleeeewwwwwuuuuiiiuuuullllluuuullllluuuuwwwwwllllllleeewwwwiiiisss

Foi como se eu tivesse chutado a quina da cama com o mindinho do pé esquerdo (meu favorito, vale ressaltar) logo ao acordar, colocando todos os sentidos em imediata prontidão. E então, aquelas palavras, proferidas pelo rugido do trovão, escritas com o fogo do relâmpago, reveladas pela mão invisível dos ventos, moldaram para sempre meu ser. Impregnaram cada célula, músculo, osso, cartilagem, tecido e verruga. Braddock... Lewis... Um chamado! Um despertar! Um... um amendoim esquecido no meu bolso! Que sorte, eu o estava procurando havia semanas!





(Raios e trovões! Crédito da foto: Tio Vítor)







Desde então, esse é o nome que assombra os patifes. É o nome que aparece na porta do meu escritório, logo acima da placa onde se lê "se você tem um problema e pode pagar, eu resolvo". É o nome com que assino minhas matérias esporádicas no jornal "A Gazeta Grunhidora". É o nome que ecoa nos cantos sobre feitos épicos de tempos idos. É o nome que as mulheres derramam acidentalmente no ouvido dos maridos no meio da noite ao procurar a proteção de um peitoral masculino. É o nome que corre a boca pequena de facções rebeldes do leste europeu que almejam oficializar o pastoreio como esporte olímpico. É este também o nome que aparece na minha carteirinha da Associação Nacional dos Criadores de Anfioxo. Sabem, aquele bicho sem notocorda? Isso mesmo. Eu crio um aqui no meu aquário. Jeremias. Esse é o nome do meu anfioxo. Bicho leal, nunca pede mais do que precisa... Ops, tergiversei!

Sim! Braddock Lewis. Guarde bem! Soletra-se B-R-A-D-D-O-C-K-L-E-W-I-S.

Claro, depois disso, imaginem o inferno que foi colocar toda minha documentação em dia.

EPÍLOGO

Algum tempo depois desse evento, fui limpar a mochila que havia usado na tal fatídica expedição à Patagônia, e adivinhem só: em um dos compartimentos, lá estava meu nome, escondido debaixo de umas meias usadas, e eu não havia percebido. As coisas estão sempre no último lugar que procuramos mesmo...

9 comentários:

Kirkegaard disse...

kkieerkaaaghhaarrkgkgkwakjkkjaaakghhaaaaaaaaa!!! Ufa, engasguei com um amendoim.

Pedro Bial disse...

Afinal, quem pode dizer o que define uma pessoa? São suas escolhas? Mas somos livres para escolher? Ou é só uma ilusão, tipo dessas de festa infantil, de chapeuzinho e lingua de sogra? É a moral? Mas o que é moral para mim pode não ser para João ou para Maria. São nossas ações? Pode ser, quem sabe, quem me dera saber. Quem entende que estar aqui é não estar ali pensa com os olhos, enxerga com os ouvidos, fala com o nariz, escuta com a boca e sente com o coração. Mais que isso, só dois disso. Nem eira nem beira, beira a beirada no Vale do Ribeira. É ribanceira, é rinossoro, é ribamar. Vai que vai, mas na hora H não vai. Prende. Estanca. Empaca. No balanço dessa dança quem está por cima ri de quem está por baixo, sem saber que quanto mais alto maior o tombo. E se estabaca, feito um babaca, tocando atabaque. Se pelo sim ou pelo não deixamos de olhar à frente só nos resta contemplar o universo como uma cadeia de eventos inexoráveis que redundantemente repete-se a si mesmo numa espiral de autocontemplação surrealista. E tudo isso antes do jantar. Que coisa. Quem conta um conto aumenta um ponto. Ponto de exclamação? Ponto de interrogação? Ponto final. Ponto meu, ponto seu, ponto nosso, ponto vosso. Nas palavras do poeta: navegar é preciso, viver não é preciso. Viver é impreciso, é instável, é incontrolável. Uma aventura sem começo, sem meio e sem fim. Sem linha de chegada, sem vencedores nem perdedores. Sem torcida, uma festa de arquibancada vazia. Em busca de respostas terminamos por levantar mais perguntas. Triste condição humana. Sei de algo? Só sei que nada sei. Pipoca na panela, começa a arrebentar. Que coisa boa. Eita ferro. Lero lero. É o que diz o maquinista, conduzindo essa nave louca pelo espaço sideral. Vem comigo, vem ali, vai daqui. Que o certo não é certo se o certo for errado. E o errado não é errado se o errado for o certo. E por aí vai.

Heidegger disse...

Mas que caralho você está falando, Bial?

Pedro Bial disse...

Sei lá.

Nietzsche disse...

Alguém aí sabe como escreve meu nome?

Samuel Beckett disse...

Godot! Godot! Alguém viu o Godot por aí? A peça já vai começar e ele ainda não chegou! Caralho!

Albert Camus disse...

Porra, esqueceram de mim de novo! Isso não faz bem para a minha auto-estima.

Confuso da Silva disse...

Se aqui não é lá, e ali é acolá, então além de ali seria acoqui do lacolém?

Finnegan's Wake disse...

Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaah.... caí!